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A mostrar mensagens de 2014

LUZ - 3.A barreira

A rotina fazia jus ao nome: igual todos os dias. Os primeiros tempos a acompanhar Luz ainda envolviam alguma confusão – era comum chamar-lhe Andreia – mas a verdade é que, sem me dar conta, começava a envolver-me naturalmente na causa. Entreguei a minha vida por completo ao projeto. Deixei de ter tempo para copos, namoradas e até família. Ligava aos meus pais, alimentando uma história desinteressante mas funcional, de uma empresa de recursos humanos que me contratara e obrigara a mudar para longe. Sem entrar em demasiados pormenores, o dia começava com uma reunião em que eram debatidas as atividades a realizar na jornada. Por vezes, sentia-me mesmo na tal empresa de recursos humanos, ao chegar, pendurar o casaco e cumprimentar os colegas. Mas a todo o instante algo me fazia lembrar que não era bem assim. Os procedimentos de segurança para entrar no Edifício (assim chamávamos a nossa “base”) contemplavam tecnologias que eu adivinhava daqui a 50 anos. Pois bem, ali estavam elas à fr

LUZ - 2."Nós não vamos. Ela vai"

É estranho para quem está de fora compreender como toda uma estrutura gira em torno de uma só pessoa. Éramos centenas, cada um com um papel a desempenhar na vida de Luz. Atrevo-me a dizer que a comum Andreia foi, de longe, o ser humano mais vigiado, condicionado e encaminhado neste planeta, e ainda assim completamente livre na sua liberdade fabricada. Os anos foram passando, Luz crescendo e a equipa mudando. Os anos também passaram por mim e vi entrar e sair muita gente do projeto. Fui escalando na hierarquia das idades, dei uma última palmada nos mais velhos que se retiraram e interroguei vigorosamente os recém-chegados. Gostava de todos e, afinal, foram o que tive de mais parecido com família. É o momento de vos falar de mim. Com uma vida banal até aos vinte e poucos, uma noite de copos na universidade mudou tudo. Copos sim. Sempre consegui conciliar a diversão com o estudo e era frequente perguntarem-me como o fazia. Voltando àquela noite, estava à espera dos amigos de sempre n

O engenho de Sócrates

Estava eu no cinema a ver as aventuras de Katniss Everdeen quando essa maravilha das novas tecnologias móveis me deu a notícia da detenção de José Sócrates durante o intervalo do filme. Pensei, aliás, que o apresentador dos Jogos da Fome fosse interromper a emissão na sala 5 do Colombo para ir em direto para o aeroporto da Portela. Confesso que sou um admirador de Sócrates, ou melhor, das suas capacidades de comunicação. Acho que, como alguns outros, tem o dom da palavra e seria desafiante ouvir as suas declarações em tribunal. Como eu, assim pensaram os inspetores da Polícia Judiciária que de deleitaram nas escutas ao ex-primeiro-ministro nos últimos meses. Ele que foi um dos impulsionadores do programa tecnológico em Portugal. De resto, José Sócrates devia figurar hoje nos jornais não por estar detido e envolvido em esquemas dos quais, infelizmente, já sabemos o nome de cor, mas sim por ter provado que estava certo numa das medidas que tomou enquanto governante. É que em 200

LUZ - 1. Génese

Todos ouvimos um dia qualquer coisa como “não tenhas medo”. Essa parecer ser uma lei universal, um nirvana a atingir, uma paz infinita pela qual devemos batalhar. Também nós pensámos assim, mas numa escala diferente. Se me perguntassem hoje, diria que tudo não passou de uma ilusão. Mas, afinal, o que move o homem senão o sonho? O meu nome é James Grikol e esta é a história de Andreia. Como todas as histórias fazem, também eu tento com ela mostrar algo. Acima de tudo, quero que todos saibam a heroína que esta mulher foi, a mãe que foi exemplo para todas as outras, o ser humano manchado pela crueldade de quem se acha superior ao semelhante. Sabíamos tudo sobre Andreia desde a primeira vez que respirou. Na verdade, já a conhecíamos antes de nascer e até de ter um nome definido. Antes de ser Andreia Gomez, já por nós era tratada por Luz, designação pensada simbolicamente. Luz – ou Andreia, como preferirem, eclodiu de um amor como tantos outros, entre uma mãe portuguesa e um pai po

Luz

Deitada na marquesa ao centro da câmara, esperava pelo início do teste. Recordava certamente o facto de ter sido escolhida entre milhares para esta experiência; como a sua vida mudara nos últimos dois anos; as caras deliciosas dos seus três filhotes; o hospital onde era médica nas urgências; os dois milhões que foram depositados na sua conta. Fora espiada desde o nascimento, eram-lhe conhecidas todas as rotinas. A personalidade foi minuciosamente dissecada e estudada. Pontualmente foi sendo testada e orientada, sem saber, para situações tensas e perigosas. Uma marioneta que, apesar de tudo, respondeu de forma notória às dificuldades que a vida – uma mentira pegada – lhe trouxe. Esta é a história de Luz (Andreia Gomez), uma mulher escolhida para ser cobaia de uma humanidade obcecada em ultrapassar o Medo Absoluto. Para acompanhar a partir de hoje, aqui, no Digo-te.

Voa para mim

Não percas nem mais um segundo. Larga tudo o que estás a fazer e faz-te à estrada, que o tempo é curto. Deixa mapas e gps para trás, segue apenas as tabuletas que nem tens tempo de ler. Apanha o próximo autocarro ou corre atrás dele se o perderes. Corre, corre, corre, livra-te de tudo o que te possa pesar no corpo e na alma: fantasmas, correntes, medos. Sai de casa a correr, bate a porta com o pé, salta os degraus de dois em dois, como se fizesses sapateado num piano e pisasses apenas as teclas brancas. Rasga esse alcatrão, acelera mais e mais, chega aos 100, aos 200, aos 300 passos de cada vez, que “passo a passo” é sinónimo de andar para trás. Sê rápida, sê tão rápida e veloz que ninguém há de reconhecer os traços perfeitos dos teus lábios ao passares. Imprime o teu vento nas folhas ao correres debaixo delas, deixa a tua marca aparecer e desaparecer num milésimo de segundo. Apanha um táxi. O do taxista mais louco que conheceres. Diz-lhe que tens pressa, que tens muita pressa

Outono

Entrámos no outono, a melhor estação do ano. Eu sei que é estranho, toda a gente prefere o verão, o calor, a praia, as roupas curtas. No máximo, a seguir ao verão virá a primavera, com o regresso do sol e das esplanadas. Logo depois o inverno, a neve, a lareira, o natal e a passagem de ano. E por último, o renegado outono. Frio, cinzento, amorfo, desconfortável. É o que muitos pensam. Mas eu não. O outono traz muito mais do que nos tira, e não estou a falar de casacos. Traz, por exemplo, o descanso de um verão animado, o parar da confusão, a calma que nos aconchega e nos faz pensar. Sobretudo isso, pensar. O outono faz-nos refletir sobre o que se passou e antever o que aí vem. Separa o trigo do joio quando prende alguns aos programas televisivos da moda que estreiam sempre na rentrée. Dá-nos outra sensação de chegar a casa e sentirmo-nos bem, sem ser preciso ir abrir as janelas para arejar. Diverte-nos quando vamos na rua a pisar as folhas secas no chão, fazendo barulhos entre

Querer

Desde miúdos que desejamos algo. Aqueles Legos, aquela Barbie, aquele jogo. Passamos a vida a atormentar quem tem o poder de decidir para que nos satisfaça esse pequeno grande desejo. No entanto, quando alcançamos, por fim, aquilo que tanto queríamos, muitas vezes o entusiasmo dura um par de dias antes de virarmos atenções para o próximo objetivo. Esta característica cresce connosco e não muda muito. O fruto proibido é sempre o mais apetecido e, quando o temos finalmente à nossa frente, fresco e com bom aspeto, a paixão que tínhamos por ele decide pregar-nos uma partida e esconder-se definitivamente. Como se ficássemos satisfeitos apenas pelo desejo de conquista e nada mais. É nosso, passemos ao próximo. Há, ainda assim, e como em tudo, exceções à regra. E que fique bem claro: se essas exceções conseguem fugir a uma condição tão pré-estabelecida é porque devem ser importantes, marcantes e únicas. Não são muitas, mas existem e fazem-se notar. Se pararmos para pensar mais a séri

Há sempre algo

Este mundo é tão imenso que a mais minúscula insignificância pode ditar aquilo que somos, o que fazemos, onde ficamos e a quem chegamos. Há sempre algo, e nem sequer é o famoso “mas”. Porque se fosse apenas um “mas” já éramos felizes há muito tempo. Nunca chego a perceber porquê. Aparece isto e aquilo, e faz desaparecer tudo outra vez. Passa uma mosca, uma simples mosca, e as suas patéticas asas fazem desabar todo o castelo de cartas que tínhamos vindo a construir e o qual pintámos com aquela cor que só existe quando estamos juntos. Eu juro, abro os olhos o mais que posso, tento antecipar tudo que vem na nossa direção. Mas só tenho duas mãos, pequenas, muito pequenas para proteger algo tão valioso. E, ainda assim, até apanho algumas pedras a tempo, mas outras esmurram, magoam, rasgam. Fazes-me, só por ti, apanhá-las e mandá-las de volta para bem longe, mas sinto-me como se estivesse a tirar água daquelas poças que fazia à beira-mar quando era miúdo. A água vem na mesma, salgad

Psicologia bancária

Parece que o BES é o próximo a necessitar da ajuda do Estado para sobreviver. O banco entrou em depressão, já não se arranja como antes, todo bonito em tons de verde-primavera. Já não sai à noite com os amigos e deixou de se cuidar. O BES precisa, é evidente, de uma namorada. A situação do Banco Espírito Santo faz lembrar aquele tipo de amigos que quando se vê com alguma autonomia deixa os velhos companheiros. Conhecia muita gente, frequentava muitos sítios, experimentava muitas coisas. Basicamente estava no auge, na capa das revistas e era RP das discotecas da moda. Tinha as miúdas que queria e carro novo oferecido pelos pais. Mas esqueceu-se de que nada dura para sempre e que a descer todos os (espíritos) santos ajudam. É giro ver como as coisas mudam. Quem não se lembra de coisas como “não tens pais verdes? Queres casa? Vai ao BES”. Bom, agora o cenário inverteu-se: os investidores até ficam verdes com os prejuízos apresentados pelas últimas contas e, se há alguém que preci

Biclas

Por entre toda a atualidade que este país nos oferece vou continuando a surpreender-me quando se calhar já não devia. Mas agora que pertencemos a uma comunidade que alberga um ditador corrupto, o leque alarga-se de tal maneira que praticamente tudo passa a ser aceitável. E a última é esta: os condutores deviam assumir as responsabilidades pelos acidentes com ciclistas, fossem culpados ou não. Como já perceberam, a coisa promete. Há movimentos para tudo. Há um que defende as lagostas para não serem cozidas vivas, há outro pela legalização das drogas leves, há mais um que preza pela diminuição de deputados na assembleia e haverá com certeza um que é completamente contra o facto de as folhas de papel não virem já escritas. Eu próprio tenho ideias para alguns movimentos e associações, como a Liga Nacional a Favor do Extermínio das Melgas ou a Associação de Moradores do Fogueteiro que Nunca Lá Moraram. E só por tudo isto percebo que haja uma corrente na sociedade portuguesa que defend

Vergüenza

Um dos assuntos que esteve em voga por estes dias foi a inclusão da Guiné Equatorial como membro da CPLP. Juro que quando ouvi isto pela primeira vez pensei que o locutor das notícias ficasse pelo “CP” e imaginei-me logo a apanhar um urbano na estação de Roma-Areeiro para Malabo, com paragem em Alfarelos para abastecer. Mas depois lá veio o LP, e que bela música deram a Cavaco e Passos no tal encontro. Tenho de admitir que foi um grande momento assistir às caras de ambos quando esperavam começar por uma valsa e de repente soou a mais estridente das guitarras de metal. Acho mesmo que o presidente da República tinha treinado uns passinhos de dança suaves com a Maria, para que quando começassem as negociações sobre a aceitação da Guiné Equatorial pudesse fazer um brilharete a meio das conversas. Mas não, Cavaco viu-se imediatamente rodeado de pessoas de cabelo comprido a abanarem violentamente a cabeça enquanto faziam um M com as mãos. E, pior do que tudo, não percebeu um chavo da le

À roda

Agora que acabou o futebol na terra dos outros e que o nosso ainda está em banho-maria, volta a haver tempo para se falar de crise, crise essa que desta vez parece ter chegado ao Bloco de Esquerda. Ana Drago, uma das carinhas larocas do partido, deixou de o ser porque, segundo a própria, são mais as divergências do que as convergências. Bom, Ana lá terá as suas razões para abandonar o barco. Não deixa de ser curioso que alguém com o seu sobrenome o faça, pois rapidamente poderia fazer aqui um trocadilho com dragar a areia das águas onde o BE há muito encalhou. Na verdade, Ana Drago atirou-se à água para rumar a terra. No entanto, se nos transportes marítimos a coisa não parece fiável, nos terrestres não está melhor. Pensemos no sistema político nacional e comparemo-lo ao trânsito. O governo pode figurar numa rotunda, ou não fosse Fernando Ruas um convicto laranja. Facto é que o executivo entrou numa roda – houve quem lhe chamasse espiral – e tem sido difícil encontrar saídas.

Magia

Quando era miúdo tinha um hábito estranho para as crianças daquela idade. Quando ia para a cama – ou melhor, quando me obrigavam a ir – ligava o rádio da mesinha de cabeceira para ouvir algo antes de dormir. E ficava aborrecido quando apenas havia música, sem palavra, porque a TSF só dava as notícias de meia em meia hora. Mas, pouco antes, passava uns segundos de publicidade, e aí já me sentia mais confortável. Já não estava sozinho naquele quarto escuro e parecia que tinha alguém ali comigo. Este texto é sobre uma situação semelhante. Quando se está longe de casa, é como se na rádio apenas passassem coisas que não são para ti. Iguais para todos, descaracterizadas, sem um toque pessoal. E, finalmente, quando te pões a caminho dos teus, mesmo com uma viagem longa pela frente, começas a ouvir a tal publicidade, que te diz que tudo o que queres vem já a seguir, que aquela pessoa está logo ao virar da curva, que algo ou alguém está ansiosamente à tua espera. O mesmo acontece quand

Endireitar

Agora que acalmou a poeira das Europeias, aqui o artista já pode lançar uns berros para o ar com a esperança de ser ouvido por alguma alma incauta. A confusão que daí resultou na esquerda não é para aqui chamada, pelo contrário. Quero focar-me na direita, “vira tudo” como diz o arrumador que nos tenta sugar 40 cêntimos quando não há mais carro nenhum a estorvar. É, pois, da extrema-direita que falo e das razões que nos devem fazer temê-la. E não estou a falar da baixa de forma do Nani nas alas da seleção. Refiro-me sim às correntes que crescem por essa Europa fora que nem cogumelos e, pior, há quem queira fazer arroz de míscaros com isso sem saber os perigos que corre. Fungos à parte, Marine Le Pen, líder da Frente Nacional, partido francês de extrema-direita, assegurou por estes dias que não pretende destruir a Europa, mas sim a União Europeia. Bom – digo eu à Marcelo Rebelo de Sousa – há que começar por algum lado e, se for pelo mais fácil, melhor. Le Pen sabe o que diz quan

Meia dúzia!

O nosso querido tasco completa hoje seis aninhos hoje! Parabéns ao Digo-te que bem os merece pela meia dúzia. E é precisamente na meia dúzia que está o segredo! Confuso? Ainda não tens o Baba & Camelo, certo? O excelso registo bibliográfico com uma seleção dos melhores dos piores ditados que aqui foram escritos!  Então aproveita: neste aniversário de meia dúzia de anos, tens meia dúzia de dias para encomendares o teu livro por meia dúzia de moedas . Podes obter o Baba & Camelo de três maneiras: 1. Diretamente através da minha pessoa, por mensagem no Facebook (campanha meia dúzia!) 2. Através dos comentários do blogue (campanha meia dúzia!). Deixa o teu email - o comentário não será publicado. 3. No site da editora Bubok Portugal (sem campanha): http://www.bubok.pt/ livros/7106/Baba-amp-Camelo Nota: Baba & Camelo pode conter vestígios de frutos de casca rija.

Sol ou sal

Só tenho uma certeza: gosto de ti. Não sei se por bons ou maus motivos, se me fazes bem ou mal. Mexes comigo, isso é certo. De uma maneira que me intriga, que me faz perguntar a quem não sabe responder. Parece sempre a minha vez de ir ao quadro e não faço ideia sobre o que escrever. És sol e sal ao mesmo tempo? Podes bem ser o sol. Chegas para tudo, chegas-me de todos os lados. Refletes em todos os que falam para mim. Vejo-te lá fora, nas árvores, nos prédios, na água. És o sol que me dá cor, que torra nas tardes de verão, que me aquece o coração no inverno quando espreitas através das nuvens negras. Só tu dás sentido à minha sombra. Dás-me energia limpa, renovável a cada sorriso, a cada olá, a cada toque. Algo me diz para ter cuidado contigo mas não quero saber. És tão quente, tão brilhante, tão aconchegante que até o teu queimar me parece saber bem. Mas… e há sempre um mas nesta vida. A porcaria de uma letra muda tudo. Não serás tu apenas sal? Aquele que me engana

Zero absoluto

Não avances. Não cabes deste lado. Será que tenho de repetir? Imagina que entre nós há um vazio profundo. Um poço de veneno, um fosso de criaturas sedentas de sangue. Quem és tu para quereres atravessá-lo? Quem te julgas para chegares a mim? Vais ficar-te por aí, esmagado, vergado, sufocado pela negação. Não me tocas, não me atinges, não me cegas. Cego és tu que não vês o limite, que não sabes a diferença entre o meu poder e a tua insignificância. Não podes nada, não vales nada, não és nada. Pensa por um momento – se fores capaz – que não podes lutar contra o destino. Que tu ficas desse lado como os cães ficam à porta, que não passas de um sem-abrigo esfomeado com quem até os pombos gozam. Tens a altura de uma formiga e a força de uma pulga. Nota-se que o teu sonho era morderes os calcanhares de algo, mas para isso terias de olhar para cima. Não consegues nem sabes fazê-lo. Estás condenado a rastejar na terra, na lama, na podridão do que és. Fundes-te com o lixo, unes-te c

Pulos de Coelho

Vi ontem a entrevista de Pedro Passos Coelho na SIC com José Gomes Ferreira. Calma, não se vão já embora que este não é um texto sobre política. Pelo menos sobre política pura e dura. Fiquem mais um pouco que eu não demoro muito. Vou apenas opinar sobre a maneira como falou o nosso primeiro-ministro. Há grandes comunicadores entre os políticos portugueses – é um facto. Paulo Portas é um deles, José Sócrates é outro e até Durão Barroso parece ter andado a ter aulas com os outros dois. Serve isto para dizer que Passos Coelho ainda não está à altura dos citados, embora esteja a fazer progressos. Quem viu o líder do PSD quando estava na oposição e quem o vê agora. Mais velho, mais anafado, mais – sem qualquer tipo de trocadilhos – seguro. Estava Gomes Ferreira a fazer-lhe perguntas diretas e eu, na minha bela maneira irritante de antecipar tudo, a tentar adivinhar como ia responder. Coelho lá foi adiando a resposta inevitável, até ao momento em que me fez rir. E convenhamos que nã

Desalinhado

Aos primeiros raios de sol já eu lavava os dentes. Olhava para minha cara afogada em sono, sempre a mesma coisa. Uma vista de olhos às horas, um último exercício de memória para ver o que me falta. Sendo que do que me falta vou eu em busca. Começo a despertar. Já há pessoas na rua, compram o jornal, tomam o café da manhã, seguem para as aulas, regressam a casa depois de uma noite intensa. Entro no metro que pareceu esperar por mim. Vejo as horas novamente: 10 minutos para o comboio. Tempo de mandar um bom dia para o outro lado. Na estação, de olhos no ecrã como se fosse uma janela para um oásis qualquer, vejo o número da linha. Entro e procuro o lugar que me vai levar ao meu lugar. Ouço aquela voz eletrónica a anunciar cada paragem, cada ponto que nos separa, cada barreira. São muitas sim, mas sei que não me podem parar porque também ouvi o destino: tu. Tento fechar os olhos para ver se engano a mente, para ver se tudo passa mais rápido, mas vejo-te em todo o lado, seja no

Quem disse que para a frente é que é caminho? Encontrem-me o sacana e tragam-mo vivo, que temos de ter uma conversa séria. Os miúdos aprendem isso em pequenos, os carrinhos andam para trás. De facto, as pessoas são como os carros: se não recuarem, como é que dão a volta? A coisa é simples: ninguém gosta de ceder. Seja numa discussão, num braço de ferro, num jogo de damas ou no trânsito. Não faz parte da nossa natureza, pronto! Temos instinto competitivo e dar a outra face soa absolutamente a derrota. Pois oiçam, amigos, que o seguinte momento é bem capaz de ser o mais filosoficamente barato de todo o texto: saber recuar no momento certo é meio caminho andado para seguir em frente. Vá, parem lá com isso que me estão a deixar envergonhado, foi só uma frase bem articulada. Mas totalmente verdadeira. Reparem que duas linhas paralelas nunca se vão tocar até que uma delas ceda. Vejam que o presidente da Ucrânia teve de abalar se queria continuar entre os vivos. Notem que Jorge Jesus

Memorando

Uma pessoa que fosse a nossa própria memória. É isso, leram bem. Todos temos direito a vaguear um bocado pelo imaginário de vez em quando e agora é a minha vez. Se há coisa em que não sou bom – e, como sabem, são muito raras – é em memória. Não me lembro de coisas que fiz ontem e nem sequer bebi. Ou se bebi… não me lembro. Mas onde eu quero chegar é ao seguinte: a memória acarreta demasiada responsabilidade para uma só pessoa. Já temos tanto com que nos preocupar neste mundo de tolinhos que resta pouco tempo, espaço e paciência para ir armazenando o nome daquela miúda, o pin do telemóvel, o aniversário de namoro ou o resultado do Benfica-Sporting de 1997. A memória é algo complexo, difícil e muito trabalhoso. Não admira que cada vez registemos mais informação em fotografias ou textos. Afinal, toda a memória humana é volátil e está condenada a desaparecer. Ora, é chegada a hora de vos apresentar a minha solução de hoje. Ou melhor, apresentei-a logo no início. Devia haver

Texturas

Nunca como hoje as pessoas estiveram tão perto. As distâncias que antes eram maiores do que o possível são agora risotas nas histórias do passado. Ir de Bragança ao Algarve passou a ser só isso, Bragança ao Algarve, e não uma viagem do outro mundo. As despedidas no aeroporto continuam a doer, mas quando antes queríamos que o voo se atrasasse por mais uns minutos, agora queremos que ele chegue rápido ao destino, para que o telefone nos una de novo. O facebook, o skype e todas essas coisas. Ainda assim, há sempre algo que se perde. Algo que, por mais sofisticados que sejam os cabos de fibra, por mais voltas que deem os satélites ou por mais gigas que tenhamos por mês, não é possível reproduzir. E isso é tão verdade que seria estúpido referi-lo. Hoje em dia parece ser estúpido reafirmar algo que seja uma verdade absoluta, que toda a gente saiba, mas que tem medo, vergonha de expressar. E é por isso que não dizemos todos os dias que temos saudades disto e daquilo, deste e daquela.

Pesos e medidas

Há uns dias passei pelo Jumbo e deparei-me com uma – na minha opinião – excelente ideia: o cliente pode agora comprar a granel. O que quer. Ao peso. Nem mais, nem menos do que aquilo que precisa. Com licença, desculpem, deixem agora passar o filósofo que há em mim e sentem-se, que isto é capaz de demorar. A coisa é simples: preciso de 138 gramas de arroz. Chego, encho um saquinho, peso, pago e venho-me embora. É tão simples que até o famoso Gervásio ia perceber esta. O que propunha era que Deus, que sei que me está a ouvir, adotasse o mesmo sistema neste mundo. Uma adoção simples, sem direito a referendo nem nada dessas mariquices. Salvo seja. Vendo bem as coisas, tudo na nossa vida vem nas proporções erradas. Ou vem sempre a mais, ou vem sempre a menos. Já diz o ditado: o apressado come cru, o atrasado come frio. Eu cá prefiro as coisas quentes. E não estou a falar daquele fim de tarde (ou noite) em Ibiza. Ia, portanto, no pedido a Deus. Queremos calor para ir à praia, El

As calças

Não faço ideia do termo técnico. Mal percebo de roupa de homem, quanto mais de mulher. Mas da mesma maneira que me queixo se uma abelha me pica, também não posso ficar calado com aquele par de calças. Sim, este é um texto sobre – e só sobre – um par de calças. Estúpido? Muito. Eu explico: noite, bar, ela. Situados? Vamos às calças então. Pretas, e de que maneira. Todos aqueles flashes das luzes, todas aquelas intermitências esbarravam naquelas calças pretas como tordos num vidro. E ainda assim, davam bem nas vistas. Não sei se era esse o objetivo mas chamaram-me de imediato a atenção. E nem era pela maneira como se moviam, que a música até estava mais para se cantar do que outra coisa. Mas coisa era o que havia ali. “Aqui há gato” pensei eu. Nunca tive gatos mas sei bem que eles são elásticos e passam baixo das portas como as cartas do correio. Só um superpoder desses podia superar o desafio de passar entre aquelas calças e o que quer que estivesse lá dentro, de tão justas.