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O engenho de Sócrates

Estava eu no cinema a ver as aventuras de Katniss Everdeen quando essa maravilha das novas tecnologias móveis me deu a notícia da detenção de José Sócrates durante o intervalo do filme. Pensei, aliás, que o apresentador dos Jogos da Fome fosse interromper a emissão na sala 5 do Colombo para ir em direto para o aeroporto da Portela.

Confesso que sou um admirador de Sócrates, ou melhor, das suas capacidades de comunicação. Acho que, como alguns outros, tem o dom da palavra e seria desafiante ouvir as suas declarações em tribunal. Como eu, assim pensaram os inspetores da Polícia Judiciária que de deleitaram nas escutas ao ex-primeiro-ministro nos últimos meses. Ele que foi um dos impulsionadores do programa tecnológico em Portugal.

De resto, José Sócrates devia figurar hoje nos jornais não por estar detido e envolvido em esquemas dos quais, infelizmente, já sabemos o nome de cor, mas sim por ter provado que estava certo numa das medidas que tomou enquanto governante. É que em 2009 o então chefe do governo inaugurava o Campus de Justiça, moderno e – esperava-se – funcional. Haverá sempre quem diga que Sócrates o fez apenas para seu benefício próprio, pois as salas de audiência onde está a ser ouvido são agora muito mais acolhedoras e confortáveis do que eram quando ele chegou ao poder.
O antigo primeiro-ministro continua, além disso, a cumprir promessas dos seus tempos de parlamento, nomeadamente na área do combate ao desemprego. Terão todos de reconhecer que a RTP procura agora um orador para os seus serões de domingo à noite, substituindo o próprio José Sócrates num cargo que desempenhava como ninguém, ou não fosse ele perito em lidar com temas quentes de maneira… porreira, pá.

A minha última palavra vai para o advogado de Sócrates e a injustiça de que está a ser alvo. João Araújo, assim se chama o senhor, vai sendo para já o único motivo de interesse dos inúmeros diretos televisivos. Seja porque foi ao DCIAP apenas “ver as montras” ou “ler o jornal”, o pobre homem até sujou os sapatos sendo obrigado a caminhar sobre a relva molhada do Campus, que não viu devido ao mar de jornalistas. No dia seguinte, fruto obviamente da gripe que resultou do resfriado nos pés, deixou escapar a frase: “Sócrates está bem, até melhor do que eu”.

Toda a gente sabe que as gripes são assim, começando com um mal-estar. E a avaliar pela terceira noite consecutiva de Sócrates atrás das grades, a dor de cabeça do seu advogado vai aumentar exponencialmente nos próximos dias.

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