É estranho para quem está de fora compreender como toda uma
estrutura gira em torno de uma só pessoa. Éramos centenas, cada um com um papel
a desempenhar na vida de Luz. Atrevo-me a dizer que a comum Andreia foi, de
longe, o ser humano mais vigiado, condicionado e encaminhado neste planeta, e
ainda assim completamente livre na sua liberdade fabricada. Os anos foram
passando, Luz crescendo e a equipa mudando. Os anos também passaram por mim e
vi entrar e sair muita gente do projeto. Fui escalando na hierarquia das
idades, dei uma última palmada nos mais velhos que se retiraram e interroguei
vigorosamente os recém-chegados. Gostava de todos e, afinal, foram o que tive
de mais parecido com família.
É o momento de vos falar de mim. Com uma vida banal até aos
vinte e poucos, uma noite de copos na universidade mudou tudo. Copos sim.
Sempre consegui conciliar a diversão com o estudo e era frequente
perguntarem-me como o fazia. Voltando àquela noite, estava à espera dos amigos
de sempre no bar de sempre com a caneca de sempre. Mas quem chegou foram dois
homens, visivelmente desenquadrados com o ambiente e que rapidamente atraíram
atenções pela carrinha negra de vidros escuros parada à porta. O espetáculo
ficou ainda mais imperdível quando um deles disse qualquer coisa ao gerente e
este começou a mandar as pessoas sair. Lembrei-me que fossem uns tipos de uma
inspeção qualquer, mas afastei a ideia quando se fixaram em mim.
Crachás mostrados, lá foram explicando que queriam
contratar-me. De momento não pensei em como tudo aquilo era estranho. Afinal,
só ouvimos histórias destas ao longe, de jovens valores que ainda nem
terminaram o curso e já têm interessados em oferecer-lhe emprego. E neste caso
era logo a polícia! Ainda não vos disse: estudei psicologia.
Nessa noite levaram-me a casa e ficou combinado que no dia
seguinte me vinham buscar para conhecer a proposta em concreto. Assim foi. Com
pontualidade britânica, os dois agentes pararam à porta da minha residência e
entrei no carro. Este foi o dia que mudou a minha vida. Não voltaria àquela
residência, àquela universidade. Continuei os estudos sim, mas de outra forma.
A verdade é que, num primeiro momento, fiquei apavorado quando me explicaram
todo o projeto do Medo Absoluto. Principalmente na parte em que não me foi dada
a opção de recusar e voltar à minha vida. Hoje não me sinto obrigado e adoro o
que faço. Mas demorou.
Resumidamente, o projeto visava estudar um tema
intrinsecamente ligado à psicologia: o medo. A forma como atua e paralisa as
pessoas em situações dramáticas. Já tinha feito alguns trabalhos neste assunto,
mas baseados em autores conhecidos e reconhecidos. Todavia, o que me propunham
agora, diziam, era algo completamente novo. E daí a parte do “Absoluto”, que
perguntei com firmeza. A resposta surgiu de forma enigmática, em forma de
pergunta.
“O que há para além do medo?”
Tremi. Como assim para além do medo? O que queriam dizer com
isso? A conversa prolongou-se com o então diretor do programa e finalmente
comecei a pensar onde queria chegar. É simples: costumamos chamar pânico ao
medo levado ao limite, mas a minha missão não se ficaria por ali. Um dos
objetivos de referência do programa seria atingir um novo tipo de medo, uma
espécie da barreira final entre a condição de humano limitado e um estado de
alma ainda desconhecido. Imaginemos uma escala – explicaram-me. O pânico
estava, até agora, no topo hierárquico. Mas os estudos do projeto, ainda sem a
parte experimental, demonstravam que esse não era afinal o último estágio.
Havia algo mais forte do que o pânico e eu estava ali para o descobrir e,
posteriormente, ultrapassar.
Demorei dias a assimilar tudo isto, e quando finalmente
fiquei mais calmo tive a coragem de perguntar: como vamos chegar ao último
estágio?
“Nós não vamos. Ela vai.”
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