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LUZ - 2."Nós não vamos. Ela vai"

É estranho para quem está de fora compreender como toda uma estrutura gira em torno de uma só pessoa. Éramos centenas, cada um com um papel a desempenhar na vida de Luz. Atrevo-me a dizer que a comum Andreia foi, de longe, o ser humano mais vigiado, condicionado e encaminhado neste planeta, e ainda assim completamente livre na sua liberdade fabricada. Os anos foram passando, Luz crescendo e a equipa mudando. Os anos também passaram por mim e vi entrar e sair muita gente do projeto. Fui escalando na hierarquia das idades, dei uma última palmada nos mais velhos que se retiraram e interroguei vigorosamente os recém-chegados. Gostava de todos e, afinal, foram o que tive de mais parecido com família.

É o momento de vos falar de mim. Com uma vida banal até aos vinte e poucos, uma noite de copos na universidade mudou tudo. Copos sim. Sempre consegui conciliar a diversão com o estudo e era frequente perguntarem-me como o fazia. Voltando àquela noite, estava à espera dos amigos de sempre no bar de sempre com a caneca de sempre. Mas quem chegou foram dois homens, visivelmente desenquadrados com o ambiente e que rapidamente atraíram atenções pela carrinha negra de vidros escuros parada à porta. O espetáculo ficou ainda mais imperdível quando um deles disse qualquer coisa ao gerente e este começou a mandar as pessoas sair. Lembrei-me que fossem uns tipos de uma inspeção qualquer, mas afastei a ideia quando se fixaram em mim.

Crachás mostrados, lá foram explicando que queriam contratar-me. De momento não pensei em como tudo aquilo era estranho. Afinal, só ouvimos histórias destas ao longe, de jovens valores que ainda nem terminaram o curso e já têm interessados em oferecer-lhe emprego. E neste caso era logo a polícia! Ainda não vos disse: estudei psicologia.
Nessa noite levaram-me a casa e ficou combinado que no dia seguinte me vinham buscar para conhecer a proposta em concreto. Assim foi. Com pontualidade britânica, os dois agentes pararam à porta da minha residência e entrei no carro. Este foi o dia que mudou a minha vida. Não voltaria àquela residência, àquela universidade. Continuei os estudos sim, mas de outra forma. A verdade é que, num primeiro momento, fiquei apavorado quando me explicaram todo o projeto do Medo Absoluto. Principalmente na parte em que não me foi dada a opção de recusar e voltar à minha vida. Hoje não me sinto obrigado e adoro o que faço. Mas demorou.

Resumidamente, o projeto visava estudar um tema intrinsecamente ligado à psicologia: o medo. A forma como atua e paralisa as pessoas em situações dramáticas. Já tinha feito alguns trabalhos neste assunto, mas baseados em autores conhecidos e reconhecidos. Todavia, o que me propunham agora, diziam, era algo completamente novo. E daí a parte do “Absoluto”, que perguntei com firmeza. A resposta surgiu de forma enigmática, em forma de pergunta.

“O que há para além do medo?”

Tremi. Como assim para além do medo? O que queriam dizer com isso? A conversa prolongou-se com o então diretor do programa e finalmente comecei a pensar onde queria chegar. É simples: costumamos chamar pânico ao medo levado ao limite, mas a minha missão não se ficaria por ali. Um dos objetivos de referência do programa seria atingir um novo tipo de medo, uma espécie da barreira final entre a condição de humano limitado e um estado de alma ainda desconhecido. Imaginemos uma escala – explicaram-me. O pânico estava, até agora, no topo hierárquico. Mas os estudos do projeto, ainda sem a parte experimental, demonstravam que esse não era afinal o último estágio. 

Havia algo mais forte do que o pânico e eu estava ali para o descobrir e, posteriormente, ultrapassar.
Demorei dias a assimilar tudo isto, e quando finalmente fiquei mais calmo tive a coragem de perguntar: como vamos chegar ao último estágio?


“Nós não vamos. Ela vai.”

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