Todos ouvimos um dia qualquer coisa como “não tenhas medo”.
Essa parecer ser uma lei universal, um nirvana a atingir, uma paz infinita pela
qual devemos batalhar. Também nós pensámos assim, mas numa escala diferente. Se
me perguntassem hoje, diria que tudo não passou de uma ilusão. Mas, afinal, o
que move o homem senão o sonho?
O meu nome é James Grikol e esta é a história de Andreia.
Como todas as histórias fazem, também eu tento com ela mostrar algo. Acima de
tudo, quero que todos saibam a heroína que esta mulher foi, a mãe que foi
exemplo para todas as outras, o ser humano manchado pela crueldade de quem se
acha superior ao semelhante.
Sabíamos tudo sobre Andreia desde a primeira vez que
respirou. Na verdade, já a conhecíamos antes de nascer e até de ter um nome
definido. Antes de ser Andreia Gomez, já por nós era tratada por Luz,
designação pensada simbolicamente. Luz – ou Andreia, como preferirem, eclodiu
de um amor como tantos outros, entre uma mãe portuguesa e um pai
porto-riquenho. Uma família humilde, com uma pequena mercearia de bairro num
estilo bem latino, típico de muitas zonas da América. Eram perfeitos para o que
queríamos, encaixavam na perfeição entre todos os escolhidos.
A mãe de Luz teve uma gravidez perfeitamente normal e
algumas situações, às quais gostamos de chamar acasos, providenciaram à família
um bem-estar fora do comum e ao qual nunca tinham sonhado chegar. Um prémio
simpático numa lotaria, os médicos certos, a segurança à altura, o
acompanhamento passo a passo. Decerto não tenho de explicar tudo, já viram
disto nos filmes. Se as coisas podem acontecer, então acontecem nos Estados
Unidos da América. Não há limites quando falamos do nosso poder. Queremos,
fazemos, temos. Na verdade, e na ausência de Deus à luz das leis que regem este
mundo maldito, fomos nós que cuidámos da família Gomez. Eles nunca souberam,
nunca hão de desconfiar. Mas a nossa mão, que tanto sabe tirar, foi ágil a
ampará-los quando foi preciso. Um toque aqui, um cordelinho puxado ali, uma
vida não é assim tão difícil de orientar quando vista de fora e, sobretudo
quando somos os únicos a olhar para ela.
Luz nasceu saudável para gáudio dos pais e irmã. Podia
dar-vos todos os dados daquela criança que acabara de ser batizada como
Andreia. Quanto pesava, quanto media, a que horas comia, o seu batimento
cardíaco… Tudo isso era monitorizado e registado dia após dias, sem que os pais
o soubessem. O objetivo primordial da missão sempre foi não interferir
diretamente com a vida dos escolhidos. Tal como quando estava na barriga da mãe,
Luz foi amparada e guiada através da sua vida por paredes invisíveis que a
levavam na direção que, acreditávamos, era a melhor. Luz, ou Andreia, era
aquela pequena pera que crescia dentro da garrafa. E nós esperávamos calmamente
pelo dia em que a colheríamos.
Devo confessar que houve momentos de stress nesta missão de
quase “padrinhos”. A verdade é que gostávamos de Luz. Caramba, desde que
nasceu… E por isso custou vê-la chorar no funeral da irmã quando tinha apenas
12 anos. Obviamente nunca queremos que um acidente deste tipo aconteça, mas a
coisa mais difícil de prever são as pessoas. Numa das várias missões diárias,
de rotina, normal, sem qualquer tipo de perigo, aconteceu algo que colocou a
irmã de Luz no sítio errado, à hora errada. Pelo menos para nós e para o
projeto. Ela não teve culpa, o erro foi nosso.
A irmã de Luz viu o que não devia ver e, como tal, assinou
inadvertidamente o seu destino. Para a família, um ataque cardíaco fulminou a
herdeira mais velha sem piedade. Na verdade, matámos a irmã de Luz. Não foi doloroso para ela nem difícil para nós. Nunca o é.
Este acidente fez com que tivéssemos de antecipar um dos
estágios da evolução. Luz experimentou sensações que só deveria ter dali a sete
anos, quando estava programado perder alguém mais chegado. A evolução da sua mente surpreendeu toda a equipa e a maneira como lidou com a morte da irmã
trouxe-nos algum alívio, porque reforçou a ideia de que era, de facto, uma grande
candidata.
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