A rotina fazia jus ao nome: igual todos os dias. Os
primeiros tempos a acompanhar Luz ainda envolviam alguma confusão – era comum
chamar-lhe Andreia – mas a verdade é que, sem me dar conta, começava a
envolver-me naturalmente na causa. Entreguei a minha vida por completo ao
projeto. Deixei de ter tempo para copos, namoradas e até família. Ligava aos
meus pais, alimentando uma história desinteressante mas funcional, de uma
empresa de recursos humanos que me contratara e obrigara a mudar para longe.
Sem entrar em demasiados pormenores, o dia começava com uma
reunião em que eram debatidas as atividades a realizar na jornada. Por vezes,
sentia-me mesmo na tal empresa de recursos humanos, ao chegar, pendurar o
casaco e cumprimentar os colegas. Mas a todo o instante algo me fazia lembrar
que não era bem assim. Os procedimentos de segurança para entrar no Edifício
(assim chamávamos a nossa “base”) contemplavam tecnologias que eu adivinhava
daqui a 50 anos. Pois bem, ali estavam elas à frente, literalmente, dos meus
olhos, das minhas mãos e dos meus dedos. Todos os dias era identificado, por
vezes mais do que uma vez por dia.
Do topo dos meus trinta e poucos, até me achava importante.
De facto, não me faltava nada do que precisava para trabalhar. E para viver.
Bem… para viver a trabalhar. A equipa de observação trabalhava por turnos, de
maneira contínua, e nem o mais pequeno arroto da ainda minúscula Luz passava
despercebido.
Era o centro das nossas atenções. Podíamos, se o
quiséssemos, fazer um álbum completo da infância, registando todos os sorrisos
e lágrimas daquela menina loira. Tínhamos algo parecido nos seus ficheiros, que
a cada dia aumentavam de tamanho com informações que, aos olhos de outros,
poderiam parecer completamente inúteis. Mas é normal que nem toda a gente
perceba a utilidade de saber quantas vezes por dia alguém pisca os olhos. Nós
sabíamos.
Já vos falei do acidente com a irmã de Luz e da maneira como
ela reagiu. Mas não vos contei a forma como me afetou. Por acaso nunca contei a
ninguém. Colocar um fim à vida de alguém era um dos ilimitados efeitos
colaterais do projeto e isso tinha ficado bem claro nos primeiros meses da
minha aprendizagem. Mas uma coisa é ouvir, outra é passar por isso. Na verdade,
todos ganhámos uma consideração por Luz. Não estava previsto, era aliás
proibido pelos regulamentos. Mas supostamente os regulamentos esbarram na nossa
pele, porque na nossa cabeça – pensamos nós – ninguém manda. Durante a infância
de Luz nunca tive a oportunidade de estar pessoalmente com ela, mas era como se
estivesse. Conhecia melhor os seus hábitos do que os meus, preocupava-me mais
com ela do que comigo. Afinal, não é isto que um pai faz com uma filha? Sem
querer, e sem nunca ter sido pai, experienciei esse sentimento com Luz durante
anos. Dei por mim a sorrir por ela quando deu os primeiros passos. Dei por mim
a torcer por ela quando fez o primeiro exame na escola. Dei por mim a partilhar
da sua rebeldia nas discussões de adolescência com a mãe. Dei por mim a querer
falar-lhe.
Esta era a barreira. Ninguém poderia ter o mínimo contacto
com Luz até ao momento certo. E ainda
faltavam uns bons anos.
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