Avançar para o conteúdo principal

LUZ - 3.A barreira

A rotina fazia jus ao nome: igual todos os dias. Os primeiros tempos a acompanhar Luz ainda envolviam alguma confusão – era comum chamar-lhe Andreia – mas a verdade é que, sem me dar conta, começava a envolver-me naturalmente na causa. Entreguei a minha vida por completo ao projeto. Deixei de ter tempo para copos, namoradas e até família. Ligava aos meus pais, alimentando uma história desinteressante mas funcional, de uma empresa de recursos humanos que me contratara e obrigara a mudar para longe.

Sem entrar em demasiados pormenores, o dia começava com uma reunião em que eram debatidas as atividades a realizar na jornada. Por vezes, sentia-me mesmo na tal empresa de recursos humanos, ao chegar, pendurar o casaco e cumprimentar os colegas. Mas a todo o instante algo me fazia lembrar que não era bem assim. Os procedimentos de segurança para entrar no Edifício (assim chamávamos a nossa “base”) contemplavam tecnologias que eu adivinhava daqui a 50 anos. Pois bem, ali estavam elas à frente, literalmente, dos meus olhos, das minhas mãos e dos meus dedos. Todos os dias era identificado, por vezes mais do que uma vez por dia.

Do topo dos meus trinta e poucos, até me achava importante. De facto, não me faltava nada do que precisava para trabalhar. E para viver. Bem… para viver a trabalhar. A equipa de observação trabalhava por turnos, de maneira contínua, e nem o mais pequeno arroto da ainda minúscula Luz passava despercebido.

Era o centro das nossas atenções. Podíamos, se o quiséssemos, fazer um álbum completo da infância, registando todos os sorrisos e lágrimas daquela menina loira. Tínhamos algo parecido nos seus ficheiros, que a cada dia aumentavam de tamanho com informações que, aos olhos de outros, poderiam parecer completamente inúteis. Mas é normal que nem toda a gente perceba a utilidade de saber quantas vezes por dia alguém pisca os olhos. Nós sabíamos.

Já vos falei do acidente com a irmã de Luz e da maneira como ela reagiu. Mas não vos contei a forma como me afetou. Por acaso nunca contei a ninguém. Colocar um fim à vida de alguém era um dos ilimitados efeitos colaterais do projeto e isso tinha ficado bem claro nos primeiros meses da minha aprendizagem. Mas uma coisa é ouvir, outra é passar por isso. Na verdade, todos ganhámos uma consideração por Luz. Não estava previsto, era aliás proibido pelos regulamentos. Mas supostamente os regulamentos esbarram na nossa pele, porque na nossa cabeça – pensamos nós – ninguém manda. Durante a infância de Luz nunca tive a oportunidade de estar pessoalmente com ela, mas era como se estivesse. Conhecia melhor os seus hábitos do que os meus, preocupava-me mais com ela do que comigo. Afinal, não é isto que um pai faz com uma filha? Sem querer, e sem nunca ter sido pai, experienciei esse sentimento com Luz durante anos. Dei por mim a sorrir por ela quando deu os primeiros passos. Dei por mim a torcer por ela quando fez o primeiro exame na escola. Dei por mim a partilhar da sua rebeldia nas discussões de adolescência com a mãe. Dei por mim a querer falar-lhe.


Esta era a barreira. Ninguém poderia ter o mínimo contacto com Luz até ao momento certo.  E ainda faltavam uns bons anos.

Comentários

Os mais vistos do momento

É dia de baba!

Baba & Camelo chega hoje vai passar tudo por aqui! Porquê Baba & Camelo? O nome do livro vem da sua configuração: está dividido em duas partes. A primeira (Baba) inclui soberbas obras de arte literárias, dignas de prémios internacionais, que deixarão o leitor precisamente de queixo caído, babando-se inevitavelmente. A segunda (Camelo) englobará pura verborreia, de qualidade a rasar a fossa, a chamada escrita de trazer por casa, que levará certamente o leitor a dedicar-me alguns dos mais tenebrosos insultos possíveis na Língua Portuguesa.  Além disto, este título vai permitir-me ainda atrair incautos curiosos, pensando eles tratar-se de uma coleção dos famosos cartoons de A Bola chamados ‘Barba e Cabelo’, bem como donas de casa enganadas por um suposto guia de receitas de doces conventuais com um nome muito semelhante. Baba & Camelo É para o menino e para a menina!

Ódio tal

Sou espectador assíduo dos canais de documentários. Tento perceber como funcionam as coisas, as vicissitudes de humanos e restantes animais que povoam este planeta. Dou por mim a fazer exercícios simples e esquemáticos para desmontar a teia complexa que constitui este mundo. Mas depois há sempre coisas que não se conseguem entender. Como ontem, em Paris. Fazendo o tal esquema até parece relativamente fácil: alguém não gostou de um cartoon e vingou-se. Uma espécie de resposta. Funciona sempre assim. Uma ação de um lado gera uma reação do outro. Uma das leis mais elementares da física é seguida à risca. Mas, na verdade, não posso nem quero acreditar que assim seja. Porque se o fizesse teria de entender que, 24 horas depois, já sei quem vai ter o próximo passo. Nada justifica o abate de uma pessoa. Quer esteja ela no chão, sem defesa possível, quer seja ela o maior criminoso à face da Terra. Este é o pensamento em que acredito e que gostaria – sonhava – ver expandido. Como nos ta

Vítor vs Álvaro

Vítor Gaspar e Álvaro Santos Pereira fazem-me lembrar um casal de namorados ao telefone, a ver qual dos dois desliga primeiro. E se o Ministro das Finanças está preocupado com o saldo do telemóvel, já o Ministro da Economia não se entende com ele, talvez devido ao sotaque luso-canadiano, estilo Nelly Furtado. Nos últimos dias tenho assistido com muita curiosidade ao desenrolar da batalha entre Gaspar e Santos Pereira. Não estivesse o país em crise e penso que o governo deveria distribuir pipocas e óculos 3D, porque este é um daqueles filmes que só não levou uma estatueta para casa por ser uma comédia romântica. Desliga tu! Não, não, tu primeiro! Então vá, vou contar até 3 e desligamos os dois. Um… dois… três! … Aaaaaaaaaahh, eu sabia! Embora neste caso seja mais: Corta tu! Não, não, eu já cortei o subsídio de Natal! Então vá, vou contar até 3 e cortamos os dois. One… two… Fala-me em português! Tens a mania que vens lá das Américas! Tu não fales mal d