Avançar para o conteúdo principal

Voa para mim

Não percas nem mais um segundo. Larga tudo o que estás a fazer e faz-te à estrada, que o tempo é curto. Deixa mapas e gps para trás, segue apenas as tabuletas que nem tens tempo de ler. Apanha o próximo autocarro ou corre atrás dele se o perderes. Corre, corre, corre, livra-te de tudo o que te possa pesar no corpo e na alma: fantasmas, correntes, medos. Sai de casa a correr, bate a porta com o pé, salta os degraus de dois em dois, como se fizesses sapateado num piano e pisasses apenas as teclas brancas.

Rasga esse alcatrão, acelera mais e mais, chega aos 100, aos 200, aos 300 passos de cada vez, que “passo a passo” é sinónimo de andar para trás. Sê rápida, sê tão rápida e veloz que ninguém há de reconhecer os traços perfeitos dos teus lábios ao passares. Imprime o teu vento nas folhas ao correres debaixo delas, deixa a tua marca aparecer e desaparecer num milésimo de segundo.

Apanha um táxi. O do taxista mais louco que conheceres. Diz-lhe que tens pressa, que tens muita pressa. Que tens de chegar antes do melhor que ele pode fazer. Desafia-o a ultrapassar todos os outros, os limites, os vermelhos, as barreiras, as regras. Assume o volante, se for preciso. Não olhes senão em frente, não te atrases com pormenores, não desvies a tua atenção por nada. Não oiças quem te chama, não tenhas sede nem fome, não penses nas consequências mas na causa.

Pede boleia, escreve o que sentes ou quem sentes numa folha A4 e mostra-a aos carros. Permite-lhes que te ajudem nesta jornada, que deem o melhor de si, que te deixem o mais perto possível. Agarra-se à brisa que corre a teu favor, cola-te a tudo o que mexa naquela direção. Reúne a força do vento, das nuvens que ele empurra e da chuva que delas cai. Aproveita a boleia do som dos trovões e ganha a velocidade da luz dos seus relâmpagos. Finta-os de paraquedas às costas, abre-o no meio das inundações lá em baixo, usa-o como barco insuflável cheio de saudades. Flutua nelas com a sola dos pés bem firme. Põe as mãos no chão se for preciso, rema com os braços com toda a força que conseguires. Aproveita o empurrar das ondas de sangue que o teu coração bombeia a cada momento e ganha força!

Ganha a força de uma águia que persegue um objetivo! Rasga o ar como um caça, esquiva-te como um míssil que tem uma missão a cumprir; sente cada uma das hélices a implodir dentro da tua pele e inventa um avião, um foguetão, uma espécie de superjato!


E por favor, voa para mim!

Comentários

Os mais vistos do momento

Clave de sol

Um círculo vermelho. E tu no meio. É assim, tão simétrica, a nossa existência. Não fosse o rock’n’roll assolar-me os ouvidos, não fossem os velhos e bons Stones ditarem o ritmo, e era nas tuas curvas que leria a pauta. Autêntica clave, mais forte do que o sol, com mais classe do que a lua. Se nas veias o sangue corre sempre em frente, na cabeça o pensamento diverge sobre todos os caminhos a tomar para chegar a ti. Somos o mapa de nós mesmos, já criámos até um caminho novo, que ninguém tinha previsto e que ninguém percorrera antes. Sem indicações, lá seguimos viagem, cientes de que 2+2 só são quatro se quisermos. Liberdade completa, foi também para isto que Abril nasceu. Existimos em todas as línguas, somos vistos em todos os gestos. Não é preciso explicar a ninguém, porque ninguém ia entender. E, no entanto, entendem-nos desde o princípio. Não fomos feitos um para o outro. Não somos o testo da panela, não encaixamos como Legos, nem temos penteados à Playmobil. Mas a forma como enco...

Afinal havia lontra, já dizia Mónica Sintra

Já lá vão mais de 20 anos deste que Mónica Sintra popularizou o tema ‘Afinal havia outra’, mas permitam-me que esta semana traga tão bela canção à memória. Isto a propósito da arrebatadora notícia vinda de Espanha sobre um alegado crocodilo à solta no rio Douro. Depois de alertas, últimas horas, páginas de jornais em papel e online, chegou-nos o tão temido desfecho: o entusiástico e perigoso crocodilo do Nilo que pôs a Península Ibérica em alerta pode, no cenário mais provável, não passar de uma lontra gorducha e fofinha . Senti-me de imediato como Mónica Sintra e partilhei o sofrimento de quem é enganado até ao último segundo, batendo depois de frente com a verdade, numa colisão frontal de onde ninguém pode sair em bom estado. Apeteceu-me cantar a plenos pulmões que ‘afinal havia lontra’ no Douro e não um crocodilo voraz à espera de um turista ou pescador apetitoso, ao bom velho estilo Jurassic Park. A caricata situação serve, pois, a meu ver, para relembrar três coisa...

Perdidos

A pergunta faz todo o sentido: como pode alguém estar perdido quando não tem para onde ir? Este texto é sobre os perdidos desta vida, aqueles que se só se encontram a si mesmos nas sombras, que vivem escondidos do sol que alguém lhes tapou. Porque a culpa de quem se perde nem sempre é sua. Aprendemos desde cedo que temos um caminho pela frente nesta vida. E que é dos desvios que nos devemos precisamente desviar. Mas há quem não siga a linha, há quem se deixe guiar pelos mais selvagens instintos e se perca na azáfama de uma sociedade que cada vez tem menos tempo para quem não se encontra. O ‘só faz falta quem cá está’ nunca foi tão palavra de ordem como agora e quem ficou pelo caminho será um dia pó que quem vem atrás vai pisar. Dois homens podem ter o mesmo mapa e irem parar a destinos diferentes. Um deles pode ter pouco dinheiro e conseguir guiar-se com mais ou menos dificuldade; o outro pode nadar em notas que não são elas que vão fazer uma ponte sobre o abismo. As bú...