Avançar para o conteúdo principal

Biclas

Por entre toda a atualidade que este país nos oferece vou continuando a surpreender-me quando se calhar já não devia. Mas agora que pertencemos a uma comunidade que alberga um ditador corrupto, o leque alarga-se de tal maneira que praticamente tudo passa a ser aceitável. E a última é esta: os condutores deviam assumir as responsabilidades pelos acidentes com ciclistas, fossem culpados ou não.

Como já perceberam, a coisa promete. Há movimentos para tudo. Há um que defende as lagostas para não serem cozidas vivas, há outro pela legalização das drogas leves, há mais um que preza pela diminuição de deputados na assembleia e haverá com certeza um que é completamente contra o facto de as folhas de papel não virem já escritas. Eu próprio tenho ideias para alguns movimentos e associações, como a Liga Nacional a Favor do Extermínio das Melgas ou a Associação de Moradores do Fogueteiro que Nunca Lá Moraram. E só por tudo isto percebo que haja uma corrente na sociedade portuguesa que defenda a tal coisa das bicicletas.

Eu gosto de andar de bicicleta, acompanhei várias etapas da Volta a França, admiro os pontapés de bicicleta do Ibrahimovic e até simpatizo com a expressão “um porco a andar de bicicleta”. Mas, meus amigos e caríssimos leitores, é impensável concordar com a recente onda.

Imagine-se a situação: lá vou eu a pedalar mas noto que já não gosto da minha bicicleta como antigamente, já não me “puxa”. Basicamente, a coisa não se resolve com um comprimido azul, embora muita gente no ciclismo tenha resolvido vários problemas à base de comprimidos. A solução está, pois, em atirar-me para cima de um carro que passe desprevenido. As culpas vão todas para o cartório do condutor, aquele malvado, que há de pagá-las porque vou comprar uma bicla nova, e das caras, com cenas e tudo.

O exemplo pode parecer estúpido mas a culpa deste texto é vossa, leitores que têm carta de condução. Mas, como neste país nunca se sabe, o melhor é jogar pelo seguro e concordar com a coisa. E sendo assim, não vejo motivos para não lhe fazer umas adendas: sugiro por exemplo que as pessoas mordidas por cães vadios se responsabilizem por tal, pagando ao animal um tratamento dentário; peço igualmente que prendam os bombeiros por destruírem os sonhos das centenas de pessoas que todos os anos ateiam incêndios florestais; que se insulte o gajo a quem a miúda pôs um belo par de saliências cranianas por ser tão panhonha; que se proíba de fazer música quem não usa sintetizadores e se prenda quem sai à rua sem tatuagens.

Fossem antes todos andar de bicicleta que estavam mais protegidos, palhaços.

Comentários

Os mais vistos do momento

Clave de sol

Um círculo vermelho. E tu no meio. É assim, tão simétrica, a nossa existência. Não fosse o rock’n’roll assolar-me os ouvidos, não fossem os velhos e bons Stones ditarem o ritmo, e era nas tuas curvas que leria a pauta. Autêntica clave, mais forte do que o sol, com mais classe do que a lua. Se nas veias o sangue corre sempre em frente, na cabeça o pensamento diverge sobre todos os caminhos a tomar para chegar a ti. Somos o mapa de nós mesmos, já criámos até um caminho novo, que ninguém tinha previsto e que ninguém percorrera antes. Sem indicações, lá seguimos viagem, cientes de que 2+2 só são quatro se quisermos. Liberdade completa, foi também para isto que Abril nasceu. Existimos em todas as línguas, somos vistos em todos os gestos. Não é preciso explicar a ninguém, porque ninguém ia entender. E, no entanto, entendem-nos desde o princípio. Não fomos feitos um para o outro. Não somos o testo da panela, não encaixamos como Legos, nem temos penteados à Playmobil. Mas a forma como enco...

Afinal havia lontra, já dizia Mónica Sintra

Já lá vão mais de 20 anos deste que Mónica Sintra popularizou o tema ‘Afinal havia outra’, mas permitam-me que esta semana traga tão bela canção à memória. Isto a propósito da arrebatadora notícia vinda de Espanha sobre um alegado crocodilo à solta no rio Douro. Depois de alertas, últimas horas, páginas de jornais em papel e online, chegou-nos o tão temido desfecho: o entusiástico e perigoso crocodilo do Nilo que pôs a Península Ibérica em alerta pode, no cenário mais provável, não passar de uma lontra gorducha e fofinha . Senti-me de imediato como Mónica Sintra e partilhei o sofrimento de quem é enganado até ao último segundo, batendo depois de frente com a verdade, numa colisão frontal de onde ninguém pode sair em bom estado. Apeteceu-me cantar a plenos pulmões que ‘afinal havia lontra’ no Douro e não um crocodilo voraz à espera de um turista ou pescador apetitoso, ao bom velho estilo Jurassic Park. A caricata situação serve, pois, a meu ver, para relembrar três coisa...

Perdidos

A pergunta faz todo o sentido: como pode alguém estar perdido quando não tem para onde ir? Este texto é sobre os perdidos desta vida, aqueles que se só se encontram a si mesmos nas sombras, que vivem escondidos do sol que alguém lhes tapou. Porque a culpa de quem se perde nem sempre é sua. Aprendemos desde cedo que temos um caminho pela frente nesta vida. E que é dos desvios que nos devemos precisamente desviar. Mas há quem não siga a linha, há quem se deixe guiar pelos mais selvagens instintos e se perca na azáfama de uma sociedade que cada vez tem menos tempo para quem não se encontra. O ‘só faz falta quem cá está’ nunca foi tão palavra de ordem como agora e quem ficou pelo caminho será um dia pó que quem vem atrás vai pisar. Dois homens podem ter o mesmo mapa e irem parar a destinos diferentes. Um deles pode ter pouco dinheiro e conseguir guiar-se com mais ou menos dificuldade; o outro pode nadar em notas que não são elas que vão fazer uma ponte sobre o abismo. As bú...