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Texturas

Nunca como hoje as pessoas estiveram tão perto. As distâncias que antes eram maiores do que o possível são agora risotas nas histórias do passado. Ir de Bragança ao Algarve passou a ser só isso, Bragança ao Algarve, e não uma viagem do outro mundo. As despedidas no aeroporto continuam a doer, mas quando antes queríamos que o voo se atrasasse por mais uns minutos, agora queremos que ele chegue rápido ao destino, para que o telefone nos una de novo. O facebook, o skype e todas essas coisas.

Ainda assim, há sempre algo que se perde. Algo que, por mais sofisticados que sejam os cabos de fibra, por mais voltas que deem os satélites ou por mais gigas que tenhamos por mês, não é possível reproduzir. E isso é tão verdade que seria estúpido referi-lo. Hoje em dia parece ser estúpido reafirmar algo que seja uma verdade absoluta, que toda a gente saiba, mas que tem medo, vergonha de expressar. E é por isso que não dizemos todos os dias que temos saudades disto e daquilo, deste e daquela.

Passou de moda sentirmos a falta de algo ou pelo menos expressá-lo. É mais fácil, mais fashion, mais in, correr para a loja e trazer o mais recente telemóvel, com tudo o que aqueles anúncios televisivos, com músicas aparentemente profundas, parecem querer fazer: devolver-nos o que está longe.

A saudade deixou de ser notícia. Tem mais audiência a câmara que nos leva até onde somos desejados, que nos mostra a rir com dentinhos favorecidos por filtros de cor. Os olhares medem-se agora aos megapixéis. Olhamos para a bateria que ainda nos resta quando antes contávamos os minutos que tínhamos. Acordamos com uma sms com dois pontos e um parêntesis e figuramos ali o rosto de olhos fechados e o cabelo despenteado que queríamos ver pela manhã.
Partilhamos o que estamos a ver com o mundo e abrimos momentos que antes eram confidenciais, quer eram nossos, que eram íntimos. Confiamos na lente para captar o que muitas vezes já nem apreciamos com os nossos próprios olhos. Preferimos o que vemos nos ecrãs, afinal sempre dá para ajustar, cortar, expandir, recolorir.

Descrevemos ações e emoções com um cardinal, como se pudéssemos carimbar tudo aquilo que é abstrato e que nos ensinaram na primária que eram impossível de tocar. Usamos bandas sonoras para tudo. Transformamos uma troca de olhares e aprisionamo-la para sempre com aquela música, que nos há de lembrar e relembrar o que de bom ou mau nos trouxer o futuro. Passeamos indiferentes ao que nos chama em redor, fechados com headphones minúsculos feitos carrascos dos nossos ouvidos, cujas entradas estão hermeticamente encerradas aos sons naturais que antes nos seduziam de fora.

Criamos personagens online dignas de livros ou ebooks. Damos-lhe características que, por vezes, não conseguimos ter na realidade. E toda a gente acredita, toda a gente cai nessa de nos cumprimentar quando um ecrã lhes diz que fazemos anos.

E quando as teclas não chegam ou parecem ter demasiadas arestas, fazer demasiado barulho, ser demasiado físicas, também elas têm os dias contados e dão lugar aos planos lisos, à palavra touch – que “tocar” é outra coisa – que nos transmite sensações ao tato tão vazias como comer papel em branco. Minimalista, dizem. Rapidamente deixamos de procurar significados num botão, inscrições numa tabuleta, letras numa frase. Simplificamos tudo, pensamos nós, para arrastarmos o mundo com um dedo. Somos mais um entre milhões, adotamos um nome de utilizador e confiamos a vida a uma password.


Apesar de tudo, sei que ficou algo. Que há lacunas por preencher. E que até para estarmos sozinhos precisamos de alguém. Alguém real, ali, ao lado. E em determinado momento acabamos sempre por percebê-lo. Porque nunca como hoje as pessoas estiveram tão longe.

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