Avançar para o conteúdo principal

Uma no cravo e outra na ditadura

Ouço/leio com mais frequência do que gostaria que o país precisava é que Oliveira Salazar cá estivesse, que naquele tempo ninguém roubava e que a Justiça funcionava a todo o gás, entre outras pérolas dignas de um sketch de Gato Fedorento.

Significa pois que mais de 80 anos não foram suficientes para confinar a terrível beleza da ditadura aos livros de história: 40 deles foram passados sob um regime opressor e os 44 seguintes sob a democracia que muitos não merecem.

É óbvio que sou um nativo da liberdade. Nasci com ela e o único contacto que tenho com essa altura negra da história lusitana é com o que vou aprendendo. Não vivi aqueles dias, não conheci aqueles tempos. Mas confio cegamente nos relatos que vou absorvendo e discernindo de outros que ficaram parados no tempo.

Teorias há muitas, ao jeito de cada um, e também eu tenho as minhas. Uma delas é que o único salazar que faz falta nos dias de hoje é o de cozinha, aquele engraçado utensílio usado para rapar a massa dos bolos. Está ali para nos servir e, quando deixa de o fazer, podemos escolher outro. Tem também a vantagem de não partir quando cai ao chão, coisa em que o senhor de Santa Comba parece ter tido azar.

Mas gostava de saber se os apologistas daquele tempo tinham sequer bolos em casa. Gostava de saber se foi agradável ver os filhos ou eles mesmos combater em guerras despropositadas. Gostava de saber se a Justiça, a saúde e a educação brilhavam tanto quanto o suposto ouro acumulado nos cofres do Estado.

Enfim, gostava apenas que me dissessem por que pensam assim.


Pensando bem, não quero saber.

Tenham um bom dia 25 de abril.

Comentários

Os mais vistos do momento

Clave de sol

Um círculo vermelho. E tu no meio. É assim, tão simétrica, a nossa existência. Não fosse o rock’n’roll assolar-me os ouvidos, não fossem os velhos e bons Stones ditarem o ritmo, e era nas tuas curvas que leria a pauta. Autêntica clave, mais forte do que o sol, com mais classe do que a lua. Se nas veias o sangue corre sempre em frente, na cabeça o pensamento diverge sobre todos os caminhos a tomar para chegar a ti. Somos o mapa de nós mesmos, já criámos até um caminho novo, que ninguém tinha previsto e que ninguém percorrera antes. Sem indicações, lá seguimos viagem, cientes de que 2+2 só são quatro se quisermos. Liberdade completa, foi também para isto que Abril nasceu. Existimos em todas as línguas, somos vistos em todos os gestos. Não é preciso explicar a ninguém, porque ninguém ia entender. E, no entanto, entendem-nos desde o princípio. Não fomos feitos um para o outro. Não somos o testo da panela, não encaixamos como Legos, nem temos penteados à Playmobil. Mas a forma como enco...

Afinal havia lontra, já dizia Mónica Sintra

Já lá vão mais de 20 anos deste que Mónica Sintra popularizou o tema ‘Afinal havia outra’, mas permitam-me que esta semana traga tão bela canção à memória. Isto a propósito da arrebatadora notícia vinda de Espanha sobre um alegado crocodilo à solta no rio Douro. Depois de alertas, últimas horas, páginas de jornais em papel e online, chegou-nos o tão temido desfecho: o entusiástico e perigoso crocodilo do Nilo que pôs a Península Ibérica em alerta pode, no cenário mais provável, não passar de uma lontra gorducha e fofinha . Senti-me de imediato como Mónica Sintra e partilhei o sofrimento de quem é enganado até ao último segundo, batendo depois de frente com a verdade, numa colisão frontal de onde ninguém pode sair em bom estado. Apeteceu-me cantar a plenos pulmões que ‘afinal havia lontra’ no Douro e não um crocodilo voraz à espera de um turista ou pescador apetitoso, ao bom velho estilo Jurassic Park. A caricata situação serve, pois, a meu ver, para relembrar três coisa...

Perdidos

A pergunta faz todo o sentido: como pode alguém estar perdido quando não tem para onde ir? Este texto é sobre os perdidos desta vida, aqueles que se só se encontram a si mesmos nas sombras, que vivem escondidos do sol que alguém lhes tapou. Porque a culpa de quem se perde nem sempre é sua. Aprendemos desde cedo que temos um caminho pela frente nesta vida. E que é dos desvios que nos devemos precisamente desviar. Mas há quem não siga a linha, há quem se deixe guiar pelos mais selvagens instintos e se perca na azáfama de uma sociedade que cada vez tem menos tempo para quem não se encontra. O ‘só faz falta quem cá está’ nunca foi tão palavra de ordem como agora e quem ficou pelo caminho será um dia pó que quem vem atrás vai pisar. Dois homens podem ter o mesmo mapa e irem parar a destinos diferentes. Um deles pode ter pouco dinheiro e conseguir guiar-se com mais ou menos dificuldade; o outro pode nadar em notas que não são elas que vão fazer uma ponte sobre o abismo. As bú...