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A noite que era minha


Eu e a noite estamos zangados. Esta é a verdade. Nunca mais saímos juntos até fugirmos os dois do dia para a minha cama, até nos abraçarmos um ao outro à espera que ela acorde de novo e possamos ir dar mais uma volta pela cidade.

A noite deixou-me e eu não sei porquê. Sempre lhe fui fiel, sempre a respeitei e estive sempre lá quando ela chamou por mim. A noite e eu éramos um só, brilhávamos ao luar como uma tiara de diamantes. A noite merecia essa tiara e eu era a pessoa certa para lha dar.

Eu e a noite estamos de costas voltadas. Por mais que eu a chame, por mais que eu lhe bata à porta, enfrentando o frio e o vento – algo que nunca foi impedimento para nós - , ela não responde, ela não está lá. Ela não brilha mais como dantes, pelo menos para mim.

Acho que a noite tem outro. Primeiro não queria pensar que isso fosse possível. Achava que tínhamos sido feitos um para o outro, que era com ela que ia ficar para sempre e que o escuro era uma das nossas cores favoritas, uma das nossas cores em comum. Mas afinal há vários tons de escuro e eu e a noite não estamos no mesmo.

A noite deve ter mesmo outro. E a verdade é que isso não me mete raiva nenhuma. A noite tem todo o direito a seguir a sua vida com quem quiser e de certeza que não faltam candidatos. Sempre assim foi, sempre foi a mais desejada. Era eu que a tinha mas havia mil almas a querer estar no meu lugar. E hoje alguém está. Alguém está hoje a aproveitar a magia da noite, alguém está lá quando ela acorda e se deita com ela de manhã. Alguém está num lugar que já foi meu. Que já foi nosso. Meu e da noite.

Restam-me as memórias. As lembranças do abraço quente de verão, da fresca brisa do inverno. Dos amigos da noite que me faziam sentir um deles, das luzes que nos guiavam quando já tínhamos um copo a mais, do relógio que deixava de interessar quando estávamos juntos.

Um dia vamos encontrar-nos, eu sei. E vai haver aquele momento estranho em que nos vamos reconhecer, em que as nossas linhas vão ser paralelas em vez de perpendiculares como eram há anos. Admito, vou gostar de te ver e sei que tu, lá no fundo, também. E ficaremos ambos em paz quando, ao voltarmos costas e cada uma seguir o seu caminho, ficarmos unidos num sorriso nostálgico. “Boa noite.”

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