Desde cedo nos ensinam a passar as coisas a limpo. Parece
haver um amor próprio em repeti-las, sem picos, sem altos e baixos,
limpinhas limpinhas, como dizia o outro.
A verdade é que nunca fui nessa conversa. O que os outros
chamavam de rascunho eu chamava de versão final; e o que eles chamavam de
versão final eu chamava de perda de tempo.
À medida que fomos crescendo, o discurso foi mudando. As
coisas passaram do papel para a vida real e a palavra também se alterou de “passar”
para “tirar” a limpo. E mais uma vez, foi-nos dito e ensinado que as incidências
desta vida têm de ser, pois então, tiradas a limpo, que os conflitos não são bem o que
mostram ser, e que estávamos errados da primeira vez.
Não querendo ser repetitivo, a verdade é que voltei a não ir
nessa conversa. Não sei, pareceu-me uma má companhia e nunca lhe dei muita
confiança. Nunca foi lá a casa e até atravesso a estrada para o outro lado
quando vem na minha direção.
Passar ou tirar as coisas a limpo retira-nos espontaneidade,
apaga-nos o instinto e torna-nos demasiado automáticos. Demasiado fiéis a um manual
de instruções, como se tivéssemos sido comprados na Fnac e houvesse um prazo de
15 dias para nos devolver.
Porquê desperdiçarmo-nos em rascunhos, porquê embatermos
quase propositadamente contra a parede se podemos seguir em frente logo à
primeira? Porquê retirar todos os risquinhos, todos os percalços que tivemos,
porquê disfarçar os nossos despistes e irregularidades? Porque havemos de
retirar humanidade ao que fazemos? Quem prefere ser artificial?
Quem quer ser de plástico?
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