Eu espanho, tu espanhas, ele espanha
Quem me conhece, para além de poder sentir-se um
privilegiado, sabe que já fui um ser mais tímido do que agora. Onde terei então
perdido essa timidez que me fazia corar as bochechas só de ver uma pessoa que
não os meus pais? Bom, basicamente fiz com a timidez o que as pessoas distraídas fazem com a carteira: fui perdendo aqui e ali, aos poucos e de maneiras incríveis. E a mais
incrível de todas pode muito bem ter sido esta: Erasmus em Salamanca.
Começou tudo com uma ideia que englobava uns dois ou três
amigos num país distante, a vivenciar uma das maiores experiências das suas
vidas. Mas rapidamente dos dois ou três amigos fiquei só eu e o país distante
foi-se aproximando até passar a ser este mesmo, aqui ao lado. Sondei a coisa lá
em casa e o “sim” parecia não querer sair, como aquele chocolate que fica
encravado na máquina e não cai. Nada que uns abanões não resolvam. O argumento de que Lisboa ficava mais longe do que
Salamanca resultou e lá fui, com o meu espanhol aprendido numa cadeira
opcional.
Se há alguém que sempre gozou com os espanhóis sou eu. Acho
até que tenho uma costela de Afonso Henriques, como a Eva tinha de Adão, e corto
cebola nos refogados como quem desbasta um exército de mouros. Os espanhóis são
aqueles vizinhos chatos que chamam a polícia quando fazemos barulho de noite.
De lá, não temos bom vento nem sequer bom casamento. Eu tenho tendência a
separar os espanhóis em dois: os que são do Barça e os que são do Real; os que
falam alto e os que são mudos; os que gostam de pão com presunto e os que
gostam de presunto com pão; e, finalmente, os que não podem ver Portugal à
frente e os que até cá vêm beber uma cerveja digna desse nome. Mas, apesar de
tudo, meti-me no meio deles, como que para constatar todos estes factos.
Salamanca é uma cidade gira. Não existe, literalmente, nada
à sua volta e o seu funcionamento até é semelhante a Coimbra. Tudo gira em torno dos estudantes, num ambiente marcado pelos monumentos a cada esquina e um
centro histórico visualmente fantástico. No fim de escolhida a habitación, num
apartamento com mais duas chicas (espanholas), lá foram os papás embora, a mãe
com o coração nas mãos e o pai com o volante. Era a grande prova de fogo. Na verdade, um dos motivos pelo
qual eu estava agora sozinho noutro país também passava por demonstrar às
pessoas um bocadinho daquilo que tinha crescido na passagem para a faculdade.
Também sabia que duas (agora) amigas de Coimbra tinham vindo de Erasmus. Mas
até então as palavras que tínhamos trocado resumiam-se ao educado “bom dia”.
15 ou 20 minutos a pé era o tempo que me separava da
Universidad Pontificia. Entrava todos os dias às 8 da manhã, o que quase me
colocou em coma castelhano ao fim dos primeiros dias. Mas para compensar, não
tinha aulas à sexta, o que me dava muito jeito para dar um ou outro saltinho a
Portugal. Instalações fantásticas, ambiente de liceu e anfiteatros amplos
fizeram-me sentir confortável. O meu espanhol não me servia para muito perante
o que ouvia dos colegas e professores. Tanto que às vezes perguntava-me quem
teriam sido os seus professores e quase me arrependia de ter recusado um curso
intensivo grátis no início do Erasmus. Ainda tentei impor o inglês mas em
Espanha isso parece ser tabu. A questão linguística causava-me alguns
problemas. Uma vez um professor perguntou-me: “Certamente sabes fritar um
ovo”. Ora, Luís Simões e a sua mente inquestionavelmente avançada terão entendido
outra coisa qualquer e respondido “não”. O professor insistiu, ouviu um não
outra vez e desistiu, perante a gargalhada da turma. Mais tarde apercebi-me e
ainda me ri da situação. Em espanhol, claro.
O fluxo de trabalho é diferente do que tinha em Coimbra.
Exigem mais trabalhos, com menor grau de dificuldade e iguais para toda a
gente, quer sejam galegos, catalães, bascos ou portugueses. A aposta recai
quase sempre em trabalhos de grupo, apresentados na aula por um
porta-voz. Do alto dos seus 1,84m, o senhor que vos escreve teve a honra de o
fazer inúmeras vezes! Aprendi imenso e trabalhei mais num semestre do que nos
anos anteriores. Estava inscrito em cadeiras de anos e cursos distintos e,
por isso, tinha aulas com muitas pessoas diferentes. Havia de tudo: desde o
galego que falava português, à miúda fofa que não falava com ninguém, passando
pelo metaleiro viciado em Megadeth e pela gaja baldas e respondona. Também
havia diversidade nos professores: um que também dava umas aulas em Aveiro, outro
que era o galã entre as miúdas, outra que se achava a melhor do mundo e outra
que era efetivamente a melhor do mundo.
As saudades da família, dos amigos e do país fizeram-se
sentir mas estava suficientemente perto para apanhar um autocarro até Viseu.
Certa vez, até aproveitei a boleia de uma moça portuguesa, bem simpática, que
estudava lá Medicina e que conheci… precisamente quando entrei no carro. Essa é uma grande vantagem de Salamanca: são dezenas e dezenas (vintenas,
portanto) de portugueses que estudam ou fazem Erasmus lá.
Lá ou cá, de vez em quando sabe tão bem ouvir
alguém que não fale a 280km/h...
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