Avançar para o conteúdo principal

Luís Simões - um homem de L a S, mas que por vezes veste XL (parte VIII)


Eu espanho, tu espanhas, ele espanha

Quem me conhece, para além de poder sentir-se um privilegiado, sabe que já fui um ser mais tímido do que agora. Onde terei então perdido essa timidez que me fazia corar as bochechas só de ver uma pessoa que não os meus pais? Bom, basicamente fiz com a timidez o que as pessoas distraídas fazem com a carteira: fui perdendo aqui e ali, aos poucos e de maneiras incríveis. E a mais incrível de todas pode muito bem ter sido esta: Erasmus em Salamanca.

Começou tudo com uma ideia que englobava uns dois ou três amigos num país distante, a vivenciar uma das maiores experiências das suas vidas. Mas rapidamente dos dois ou três amigos fiquei só eu e o país distante foi-se aproximando até passar a ser este mesmo, aqui ao lado. Sondei a coisa lá em casa e o “sim” parecia não querer sair, como aquele chocolate que fica encravado na máquina e não cai. Nada que uns abanões não resolvam. O argumento de que Lisboa ficava mais longe do que Salamanca resultou e lá fui, com o meu espanhol aprendido numa cadeira opcional.

Se há alguém que sempre gozou com os espanhóis sou eu. Acho até que tenho uma costela de Afonso Henriques, como a Eva tinha de Adão, e corto cebola nos refogados como quem desbasta um exército de mouros. Os espanhóis são aqueles vizinhos chatos que chamam a polícia quando fazemos barulho de noite. De lá, não temos bom vento nem sequer bom casamento. Eu tenho tendência a separar os espanhóis em dois: os que são do Barça e os que são do Real; os que falam alto e os que são mudos; os que gostam de pão com presunto e os que gostam de presunto com pão; e, finalmente, os que não podem ver Portugal à frente e os que até cá vêm beber uma cerveja digna desse nome. Mas, apesar de tudo, meti-me no meio deles, como que para constatar todos estes factos.

Salamanca é uma cidade gira. Não existe, literalmente, nada à sua volta e o seu funcionamento até é semelhante a Coimbra. Tudo gira em torno dos estudantes, num ambiente marcado pelos monumentos a cada esquina e um centro histórico visualmente fantástico. No fim de escolhida a habitación, num apartamento com mais duas chicas (espanholas), lá foram os papás embora, a mãe com o coração nas mãos e o pai com o volante. Era a grande prova de fogo. Na verdade, um dos motivos pelo qual eu estava agora  sozinho noutro país também passava por demonstrar às pessoas um bocadinho daquilo que tinha crescido na passagem para a faculdade. Também sabia que duas (agora) amigas de Coimbra tinham vindo de Erasmus. Mas até então as palavras que tínhamos trocado resumiam-se ao educado “bom dia”.

15 ou 20 minutos a pé era o tempo que me separava da Universidad Pontificia. Entrava todos os dias às 8 da manhã, o que quase me colocou em coma castelhano ao fim dos primeiros dias. Mas para compensar, não tinha aulas à sexta, o que me dava muito jeito para dar um ou outro saltinho a Portugal. Instalações fantásticas, ambiente de liceu e anfiteatros amplos fizeram-me sentir confortável. O meu espanhol não me servia para muito perante o que ouvia dos colegas e professores. Tanto que às vezes perguntava-me quem teriam sido os seus professores e quase me arrependia de ter recusado um curso intensivo grátis no início do Erasmus. Ainda tentei impor o inglês mas em Espanha isso parece ser tabu. A questão linguística causava-me alguns problemas. Uma vez um professor perguntou-me: “Certamente sabes fritar um ovo”. Ora, Luís Simões e a sua mente inquestionavelmente avançada terão entendido outra coisa qualquer e respondido “não”. O professor insistiu, ouviu um não outra vez e desistiu, perante a gargalhada da turma. Mais tarde apercebi-me e ainda me ri da situação. Em espanhol, claro.

O fluxo de trabalho é diferente do que tinha em Coimbra. Exigem mais trabalhos, com menor grau de dificuldade e iguais para toda a gente, quer sejam galegos, catalães, bascos ou portugueses. A aposta recai quase sempre em trabalhos de grupo, apresentados na aula por um porta-voz. Do alto dos seus 1,84m, o senhor que vos escreve teve a honra de o fazer inúmeras vezes! Aprendi imenso e trabalhei mais num semestre do que nos anos anteriores. Estava inscrito em cadeiras de anos e cursos distintos e, por isso, tinha aulas com muitas pessoas diferentes. Havia de tudo: desde o galego que falava português, à miúda fofa que não falava com ninguém, passando pelo metaleiro viciado em Megadeth e pela gaja baldas e respondona. Também havia diversidade nos professores: um que também dava umas aulas em Aveiro, outro que era o galã entre as miúdas, outra que se achava a melhor do mundo e outra que era efetivamente a melhor do mundo.

As saudades da família, dos amigos e do país fizeram-se sentir mas estava suficientemente perto para apanhar um autocarro até Viseu. Certa vez, até aproveitei a boleia de uma moça portuguesa, bem simpática, que estudava lá Medicina e que conheci… precisamente quando entrei no carro. Essa é uma grande vantagem de Salamanca: são dezenas e dezenas (vintenas, portanto) de portugueses que estudam ou fazem Erasmus lá. 

Lá ou cá, de vez em quando sabe tão bem ouvir alguém que não fale a 280km/h...

Comentários

Os mais vistos do momento

Clave de sol

Um círculo vermelho. E tu no meio. É assim, tão simétrica, a nossa existência. Não fosse o rock’n’roll assolar-me os ouvidos, não fossem os velhos e bons Stones ditarem o ritmo, e era nas tuas curvas que leria a pauta. Autêntica clave, mais forte do que o sol, com mais classe do que a lua. Se nas veias o sangue corre sempre em frente, na cabeça o pensamento diverge sobre todos os caminhos a tomar para chegar a ti. Somos o mapa de nós mesmos, já criámos até um caminho novo, que ninguém tinha previsto e que ninguém percorrera antes. Sem indicações, lá seguimos viagem, cientes de que 2+2 só são quatro se quisermos. Liberdade completa, foi também para isto que Abril nasceu. Existimos em todas as línguas, somos vistos em todos os gestos. Não é preciso explicar a ninguém, porque ninguém ia entender. E, no entanto, entendem-nos desde o princípio. Não fomos feitos um para o outro. Não somos o testo da panela, não encaixamos como Legos, nem temos penteados à Playmobil. Mas a forma como enco...

Afinal havia lontra, já dizia Mónica Sintra

Já lá vão mais de 20 anos deste que Mónica Sintra popularizou o tema ‘Afinal havia outra’, mas permitam-me que esta semana traga tão bela canção à memória. Isto a propósito da arrebatadora notícia vinda de Espanha sobre um alegado crocodilo à solta no rio Douro. Depois de alertas, últimas horas, páginas de jornais em papel e online, chegou-nos o tão temido desfecho: o entusiástico e perigoso crocodilo do Nilo que pôs a Península Ibérica em alerta pode, no cenário mais provável, não passar de uma lontra gorducha e fofinha . Senti-me de imediato como Mónica Sintra e partilhei o sofrimento de quem é enganado até ao último segundo, batendo depois de frente com a verdade, numa colisão frontal de onde ninguém pode sair em bom estado. Apeteceu-me cantar a plenos pulmões que ‘afinal havia lontra’ no Douro e não um crocodilo voraz à espera de um turista ou pescador apetitoso, ao bom velho estilo Jurassic Park. A caricata situação serve, pois, a meu ver, para relembrar três coisa...

Perdidos

A pergunta faz todo o sentido: como pode alguém estar perdido quando não tem para onde ir? Este texto é sobre os perdidos desta vida, aqueles que se só se encontram a si mesmos nas sombras, que vivem escondidos do sol que alguém lhes tapou. Porque a culpa de quem se perde nem sempre é sua. Aprendemos desde cedo que temos um caminho pela frente nesta vida. E que é dos desvios que nos devemos precisamente desviar. Mas há quem não siga a linha, há quem se deixe guiar pelos mais selvagens instintos e se perca na azáfama de uma sociedade que cada vez tem menos tempo para quem não se encontra. O ‘só faz falta quem cá está’ nunca foi tão palavra de ordem como agora e quem ficou pelo caminho será um dia pó que quem vem atrás vai pisar. Dois homens podem ter o mesmo mapa e irem parar a destinos diferentes. Um deles pode ter pouco dinheiro e conseguir guiar-se com mais ou menos dificuldade; o outro pode nadar em notas que não são elas que vão fazer uma ponte sobre o abismo. As bú...