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Beira-Morte


O sangue é tão quente que quase derrete o que resta da linha contínua. É triste. Escorre lentamente para a terra. Tão, tão lentamente como o respirar que se ouve ao fundo. É tão lento. Parece calmo. Como o sangue que escorre de lá para a terra. Ninguém passa, ninguém vê, ninguém sabe, ninguém ouve. Pisca a apaga de vez a última luz. Está escuro. Como o sangue dele que escorre para a terra. Não consegue falar. Uma única palavra que seja. Emite tanto som como o sangue que lhe sai de todo o corpo e escorre para a terra.

Cheira a qualquer coisa. A gasolina jorra aos soluços do depósito, como o sangue que por baixo do luar se vai acumulando na terra. Misturam-se. Combustíveis de homem e máquina, incompatíveis como homem e máquina, frágeis como homem e máquina, que abandonam agora homem e máquina às suas sortes, aos seus azares, ao seus desnortes, às suas mortes.

Há cortes na árvore cá atrás. A seiva escorre no escuro, lentamente, qual sangue gasolina, até à terra que a há de comer. Que os há de comer a todos. Homem, máquina, árvore, sangue, gasolina, seiva. A árvore parece chorar e assoar-se às folhas. As folhas que lhe dão vida são agora abandonadas pela seiva. E a chuva chega. Cai sobre todos. Água sobre homem, máquina, árvore. Mistura-se com sangue, gasolina e seiva, e como eles, escorre para a terra.

Há um gemido. Ouviu-se, houve um som. Um último esforço dos maxilares deslocados parece pedir ajuda. Não se percebe. Uma única palavra que seja. A impotência substitui-lhe o líquido nas veias. Veias que agora respiram ao ar livre, que veem tudo, que se esgotam rapidamente. Abrem-se os olhos. Já quase não se vê o branco. Já quase vê tudo branco. Solta-se uma lágrima. E mais outra do outro lado. Descem misturadas com a chuva pela face, destroçada como a mente, como o corpo, como o espírito. As lágrimas sucedem-se. Escorrem como o sangue, como a gasolina, como a seiva. Mas as lágrimas são especiais, não vão para a terra. As lágrimas não abandonam o corpo. Parecem saber porque caem, é como se compreendessem o seu papel de analgésico natural para a face, para a mente, para o corpo, para o espírito. As lágrimas agarram-se à pele, e ele tenta agarrar-se à vida. Mas ninguém passa, ninguém vê, ninguém sabe, ninguém ouve.


O sangue é muito na terra e pouco no corpo. Mas… as lágrimas ganham vida. Ganham um azul intermitente! Ganham barulho! Refletem palavras de gente apressada! E as lágrimas sucedem-se com a esperança de poderem suceder-se por muitos anos ainda.

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