Todos os anos é a mesma coisa. O mundo parece esquecer-se
durante os meses mais quentes de como é viver com chuva. E assim que cai a
primeira, escorregamos, caímos e mergulhamos em poças de fantasmas passados,
tão cinzentos quanto este tempo. Aí estão elas de novo, as primeiras chuvas.
Apanham-nos desprevenidos. Saímos de casa de manga curta, de
sapatilhas prontas a roer o asfalto, mas afinal apenas encontramos água a cair
do céu, que teima infiltrar-se no nosso corpo e corroer as nossas memórias. A
água fria não nos traz as melhores recordações e procuramos rapidamente um
acoito onde nos possamos defender.
É que até o mais forte dos ferros se deixa moldar pela água.
Basta tempo. É por isso que procuramos
apoio. O de um guarda-chuva, o de um
casaco, o de um abraço. Qualquer coisa que nos fale do sol que vivemos e que
nos garanta que ele vai regressar mais depressa do que pensamos. Alguém que
troce dos senhores da meteorologia, que diga que eles não percebem nada disto e
que os alertas amarelos não passam de exacerbações.
Mas a verdade é que chove e, diz o provérbio, quem anda à
chuva molha-se. Uma espécie de risco, de arriscar-se a petiscar algo fora da
validade ou estragado por este tempo sombrio. É que outono é o mais belo de
todos sim, mas nem só pelo que tem de bom. Há um lado negro, uma voz do passado
que não queremos e que nos amedronta o futuro. E ainda assim parece ser difícil
resistir-lhe, porque o guarda-chuva pode tapar-nos a cabeça, mas não os pés.
Evitemos, pois, as poças de sereias e caminhemos para terra
firme, que a chuva há de passar.
Comentários
ele viu, contemplou o que sentiu em cada uma das estações, e cognitivamente atribuiu significados.
para uns mais sérios, para outros mais construtivos, para uns mais saudosos e dolorosos. para uns coerentes,outros dramáticos,outros puramente factual.
o que importa aqui é que o homem faz uso do que vê para se lembrar de como se sente. ou talvez o que se sentiu fique implicitamente retido numa paisagem, sejam folhas de outono numa porta, frio num lugar ou sol no coração.
que não nos esqueçamos igualmente, que a vida tem um poder enorme de nos fazer acreditar que as paisagens, tal como nós , estão em contínua mudança.
portanto pode haver sol no outono, chuva no verão e frio na primavera.
é uma questão de perspectiva!