Raras são as vezes em que o dia-a-dia nos corre tão bem como
aquele final do filme das nossas vidas. Os bons não ganham todas as batalhas,
nem sempre conseguimos agarrar a mão de quem cai no precipício, ninguém acerta
sempre nas escolhas que faz. Mas nada disso nos tira um direito que é nosso,
que assiste a qualquer um, que ninguém tem o poder de tirar a outrem: sonhamos.
Inicialmente sonhamos com monstros. Temos medo que eles
estejam debaixo da cama, que saiam do nosso roupeiro de noite e que a luz de
presença que os papás deixaram acesa não seja suficiente para os afugentar.
Mas, afinal, quem os leva para longe é a idade. Os anos passam, os papões
fogem. Ou, pelo menos, mudam de forma.
Traçamos sonhos na adolescência. Muitos, mais do que podemos
processar. E por isso não calculamos muitos, não percebemos alguns, não atingimos
nenhuns. Mas essa é a fase própria para
isso, para fazer dos rascunhos vigas de
metal sobre as quais assentamos o que pensamos ser uma vida eterna de folia,
salpicada com melodramas de namoricos e discussões em casa.
Ingressamos depois na maioridade, na faculdade e num mundo
completamente novo. Temos um livre arbítrio que nos faz voar a toda a
velocidade, que nos tira os pés que antes alguém nos assentava no chão por
força do respeito. Aqui cumprimos quase todos os sonhos porque temos esse
poder, o de conseguir tocar em tudo o que queremos. Ou assim pensamos quando
estamos embebidos pelo álcool, quando somos abraçados pelo fumo, quando
sentimos a pele de outra pessoa na nossa.
Nada disso dura para sempre porque os anos de estudo têm
data de validade. Consumimos tudo de preferência antes de chegar a nova fase,
aquela em que teremos um choque dos grandes. É aqui que ficamos a saber que nem
sempre vamos ter lápis de cor para desenhar os sonhos; que muitas vezes eles
vêm apenas a preto e branco e nunca teremos tempo de os colorir a todos. Nunca
teremos as pessoas suficientes para os preencher a todos. Vamos ter de
escolher, de optar, de selecionar. E isso vai doer.
Há, ainda assim, bonança após a tempestade. As coisas
estabilizam, o mar acalma e os adamastores já nos deixam passar as ideias de
forma mais clara. O nevoeiro dissipa-se e notamos que há sonhos que resistiram.
Que ficaram, que apuraram em lume brando e estão prontos para serem agarrados.
Aqui estamos nós, com 27, 28, 29 anos. Os problemas existem
na mesma, mas olhamos para eles de forma distinta. Já não queremos revolucionar
o mundo de forma estrambólica, já ninguém precisa de se tentar colocar ao nível
dos outros. O nível somos nós e quem nos rodeia. As coisas simplesmente fluem,
mesmo quando nos parece que a ampulheta não está a deixar passar a areia e
nunca mais é sábado. A verdade é que os sábados chegam todas as semanas e já
nos apercebemos disso. O mundo já não acaba ontem com aquela desilusão nem vai
desabar para a semana por causa daquela reunião. E ainda que não possamos
adivinhar como será daqui em diante, não nos regemos por isso. Porque há muito
mais onde dispensar atenção e quem a mereça receber. É o início dos sonhos.
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